quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Sophia

Quando despertou o sol já estava alto. Mexeu-se preguiçosamente na cama, esticando todos os músculos possíveis e tendo a estranha sensação que estar morta era muito parecido com estar viva.

O rádio relógio na cabeceira da cama mostrava 15h36, o que a trouxe para a realidade e a fez descobrir-se viva. Disfarçou a indignação e saiu da cama pelo lado direito para alcançar o cigarro, fumou apressadamente três deles e sentiu que já podia deixar que os raios de sol encontrassem sua face desgostosa. Atravessou o quarto em busca da janela e viu a poça de vômito, junto a ela suas esperanças de dar fim às angustias. Entendeu porque o coquetel de remédios não fez efeito, mas ainda insatisfeita, procurou em seu organismo algum sintoma, alguma estranheza ou reação, sem sucesso.

Ainda indiferente à própria condição abriu a janela sem o mínimo de auto-piedade e ficou por instantes perdida em pensamentos: olhando o prédio vizinho e admirando a nova pintura anil, observando as crianças que brincavam no playground e por fim as orquídeas do jardim de seu prédio. - Como gosto de orquídeas, pesou ela após uma quarentena sem pensar em si própria.

O telefone tocava e talvez ela não teria prestado atenção à não ser pela mensagem deixada na secretaria eletrônica: “Sophia querida! Faz dois dias que não temos noticias suas... Seguiu meu conselho? Coloca suas dores no papel! Mande noticias”. Lembrou-se do texto. Sophia olhou para sua escrivaninha, muitos papeis na pequena lixeira e duas folhas de rascunho sobre a mesa. Pensou em todas as tentativas de narrar sua historia e o quanto aquilo lhe doía sem frutos. Aproximou-se do material que já tinha rabiscado e mais uma vez odiou sua grafia, olhou o seu nome na folha junto ao nome de Léo e impulsivamente rasgou as folhas.  Ligou para a diarista e desceu para preparar um café bem forte.

Na cozinha pensou que os motivos para morrer eram talvez os mesmo para continuar viva. Teve a certeza que vivia numa outra época em que mortes gloriosas por assuntos honrosos já não valiam de nada... Uma ou duas notinhas no jornal e nada mais. Irritou-se como há muito tempo não se irritava e de certa forma aquilo foi bom... Afastou a angustia reprimida. Terminou o café e tomou um banho quente e demorado. Trocou-se e sentiu vontade de ser outra. Saiu para a rua com um pensamento, um pensamento não, uma canção da adolescência:

“Não não não não
Viver é uma dádiva fatal!
No fim das contas ninguém sai vivo daqui mas -
Vamos com calma !”¹

Yeah! Lembrou-se Sophia como terminava a canção e sorriu depois de meses. Decidida a ver algo no cinema.


1.    Legião Urbana, Só por hoje
IMAGEM: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhN9h9vEOMC-1peyI8Rv2DE8LpMb7kxs6fRGrdt3mwA5HSuDXbhU6xbPxOMU2AnvIagGkpWjifktrcpgASGH_BrYrp13FYrv-Si8xxWX6D1t-c1tLBOM50YsqrvsrdM-cTw4bxVRaOv53Q/s400/mulher20na20janela.jpg

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